a pureza da Santa tem o rosto de uma mulher negra

Marina Teixeira
7 min readApr 17, 2024

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um olhar sobre Santinha, de “Renascer”

Em uma cena de “Renascer”, novela das 21h da TV Globo que está sendo exibida atualmente, um dos personagens principais da história, o cacauicultor José Inocêncio (Marcos Palmeira), está dormindo em uma cadeira e ao acordar, tem uma espécie de delírio, onde vê a mulher que logo será sua esposa, a jovem Mariana (Theresa Fonseca) e ao lado dela, a imagem de um fantasma — a memória de seu grande amor, Maria Santa (Duda Santos). As duas estão colocadas em lados distintos do frame, em plano aberto — Mariana, ao lado de onde estaria escondido o diabinho na garrafa, que ajudou Inocêncio em sua ascensão no sul da Bahia na primeira fase da trama (em que era vivido por Humberto Carrão); e Santinha (como é carinhosamente chamada Maria Santa) do lado oposto, próxima à Nossa Senhora.

Reprodução: TV Globo

Essa representação não vem do nada — Mariana, que chega à região para se vingar de José Inocêncio por considerá-lo o responsável pela morte de seu avô, Belarmino (Antonio Calloni) e a desgraça de sua família, é a representação do desejo, sedução e cobiça que envolvem José Inocêncio e seu filho, João Pedro (Juan Paiva). Afinal de contas, o rapaz se apaixona por ela primeiro, mas é o pai quem se casa com Mariana — e dentro da narrativa da história, escrita por Benedito Ruy Barbosa e adaptada em 2024 por Bruno Luperi, entendemos que Inocêncio ficou com a mulher por quem o filho era apaixonado não apenas por amor, e sim pelo ressentimento guardado por anos contra João Pedro (acusado pelo fazendeiro de ser responsável pela morte de Maria Santa no parto).

Por isso, mesmo que Mariana tenha se apresentado no começo de suas aparições em “Renascer” como essa jovem vulnerável, em busca de proteção e amor, essa representação vem sempre com algo dúbio no olhar, nos gestos, nas expressões, que envolve menos pureza e inocência e mais perfídia, sedução, interesse, e mais tarde, vaidade.

Elementos que, em muitas novelas, são associados a personagens femininas negras — enquanto o exemplo de pureza e inocência ficava com a personagem branca.

E é nesse ponto que “Renascer” vira a chavinha da mensagem convencionalmente enviada pelos produtos de mídia há décadas.

Gosto se discute porque é construído

Ninguém consome produtos midiáticos feito tábua rasa. Nossa compreensão da mensagem passada pela televisão vem de um background cultural que envolve formação familiar, religiosa, poder aquisitivo e vieses pré-concebidos de toda forma. Por isso, quando se vê uma novela passada no eixo Rio-São Paulo, por exemplo, não há estranhamento vindo do espectador, porque essas duas cidades são colocadas como o centro financeiro e cultural do país há décadas, algo reforçado nas escolas, nos jornais, e repetido de geração a geração.

A presença racial nas novelas e como personagens brancos e negros são recebidos nas tramas também é afetada pelo entorno. Numa sociedade racista e que ainda hoje, em 2024, é reflexo dos 400 anos de escravidão, ser branco ainda é considerado default. A referência de humanidade, correção, perfeição; enquanto a pessoa negra (pessoas não-brancas num geral) está em uma posição de marginalização. A partir do fenótipo se estabelecem “perfis” — o homem negro retinto é o malandro, boa-vida, cafajeste meio Macunaímico, sempre buscando uma vantagem. Outras vezes são hipersexualizados; enquanto em diversas situações, eles são colocados em posicao de artífices da violência. A mulher negra, se mais velha, é a doméstica servil, a babá, aquela que é “quase da família”; se mais nova e com o corpo convencionalmente padrão, é hipersexualizada, tratada como beleza exótica, apenas uma figura para sexo e nada mais. Em outras situações, são “mulheres fortes”, que “aguentam tudo”, sem dar a elas o direito de serem sensíveis, de serem alvos da gentileza alheia.

Essas percepções são apresentadas em diversas produções midiáticas na TV brasileira de hoje e de ontem, o que, por consequência, faz com que o público, alimentado por essas representações durante décadas, não receba uma protagonista negra em novela do horário nobre com a mesma paciência e tolerância que uma mocinha branca, por exemplo. Quantas vezes uma protagonista negra em novela do horário nobre é apagada para beneficiar uma narrativa com personagens brancos? Pior, são personagens mal-construídas de uma maneira que parece até proposital que elas não sejam abraçadas pelo público e queridas.

Como eu disse lá atrás, o consumo de produtos midiáticos não vem do vazio — tudo que você assiste, lê, ouve, e como você entende esse produto, é influenciado pelas referências culturais que você possui — e a mensagem também é construída a partir desses vieses. Então, se vivemos em uma sociedade racista, em que boa parte da população não está acostumada e muitas vezes não aceita ver uma personagem negra em papel de destaque, ou centralizado na trama, há um choque entre os vieses pré-concebidos e o que aparece na tela.

Quando o autor não constroi essa personagem negra com as mesmas camadas as quais as personagens brancas têm esse privilégio, os vieses pré-concebidos muitas vezes parecem ser confirmados pelo que aparece na tela.

“Personagem chata”, “atriz fraca”, “ela não tem carisma”, quando a atriz em questão está defendendo bravamente o papel com o que lhe é dado.

Enquanto isso, a personagem branca, construída de maneira criteriosa e com agenda, entorno, interesses, cresce na trama e ganha destaque. A mensagem está sendo passada, e o espectador, a partir de suas referências, encontra na personagem branca um espaço de conforto — a familiaridade do conhecido.

O “espaço de conforto”, algumas vezes, é a mulher branca em posição de humanidade, de bondade, onde a ela é permitido errar e acertar; mas principalmente, é o espaço onde ela representa o “bem”. O correto, o justo. Enquanto a mulher negra é relegada em segundo plano, refém dos estereótipos: para que “se compadeçam” dela, ela “sofre mais que JC, pois aguenta”; para que achem o casal “interessante”, usam a personagem apenas para cenas “quentes de sexo”.

Mas o que “Renascer” tem a ver com isso?

O que a atual novela das 21h faz é tirar o espectador do “espaço de conforto”. O fato de o elenco ter bem mais atores negros que em outras produções da Globo, respeitando a demografia baiana, ofereceu uma oportunidade única de inverter expectativas, trazendo personagens tridimensionais e com agência, além de perfis que poucas vezes eram dados para atores negros em novelas.

No caso de Santinha, uma mulher ingênua, doce, inocente e protegida do mundo, quem acreditava até mesmo que um beijo poderia levar à gravidez, colocar o rosto dessa inocência em uma mulher negra retinta é algo pouco, ou raramente visto na tela — e que oferece um perfil que o espectador convencional também não está acostumado a ver, porque as próprias referências impostas pela sociedade jamais colocaram a mulher negra como essa figura. A mulher negra é vista dentro do exotismo, é hipersexualizada, vista apenas como um corpo e alvo de desejo, nunca de amor ou adoração. Santinha, em “Renascer”, é uma personagem que não termina a trama na mesma posição que começou, que aos poucos ganha agência, conhece a parte ruim do mundo, mas não é endurecida por esse processo, mantendo a mesma doçura e gentileza que fizeram com que José Inocêncio se apaixonasse por ela.

Uma personagem tridimensional ganha contornos mais profundos quando é interpretada (brilhantemente na novela das 21h, vale ressaltar) por uma atriz negra, porque há outras camadas que vão além do que está à vista dentro da trama. Só que esse tipo de personagem tridimensional, como já dito, não é entregue a atrizes negras. Tampouco esse perfil que é convencionalmente associado a atrizes brancas. E aí está a virada de chavinha proposta dentro de “Renascer”: a mulher que será amada eternamente por um dos personagens principais da história, que é colocada em um grau de respeito, adoração; que é vista como meiga, gentil, e mesmo com a mudança de fase sua ausência é sentida, alvo de inveja e de ressentimento, mas principalmente de amor, de carinho e saudade, é uma mulher negra retinta.

O que nos leva a…

Discutir novamente sobre representações de mulheres nos produtos culturais e que mulheres estão sendo representadas nessas histórias. Que mulheres têm o direito de serem tridimensionais, de saírem dos perfis convencionais. No caso de Santinha — e por consequência, no caso de mulheres negras — que mulheres jamais tiveram a chance de serem apresentadas também com a mesma perspectiva usada apenas para mulheres de uma cor.

Televisão aberta ainda é espaço de educação, mesmo com os canais fechados e ascensão do streaming. Apresentar a uma parcela da sociedade, ainda treinada e “educada” a partir de associações ligadas a conceitos racistas, a uma visão diferente, positiva, é uma virada de chave que pode ensinar. Pode mostrar que mulheres negras são bem mais do que a impressão que se convencionou por tanto tempo. Podem até ser sensuais, belas, sedutoras, mas como reflete o Teste de Kent (desenvolvido pela jornalista e crítica cultural estadunidense Clarkisha Kent, sobre representação de mulheres não-brancas na mídia), esse perfil é válido quando há agência, construção, camadas. Elas também podem ser comuns, grandiosas, complexas, e principalmente, podem e devem ser amadas.

Não apenas na novela das 21h, como também na vida real.

Algumas referências para compor esse texto foram:

BORGES, Andressa Caniza. Popularização da leitura da mulher negra na telenovela: Viver a Vida (2009) e reflexos estruturais na sua dramaturgia. 2022. Trabalho de Conclusão de Curso.

GOMES, Igor Bergamo Anjos et al. A ameaça simbólica das cotas raciais na mídia brasileira: o negro nas telenovelas. 2008.

SOUZA, Julianna Rosa de. Personagem Negra: uma reflexão crítica sobre os padrões raciais na produção dramatúrgica brasileira. Revista Brasileira de Estudos da Presença, v. 7, p. 274–295, 2017.

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Marina Teixeira
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Written by Marina Teixeira

writer, journalist and anxious overthinker

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