e não é que o plot da adaptação de “Senhora” na novela das 18h faz sentido?
sobre lógica e diversidade nas adaptações — e ideias que brotam na cabeça da ansiosa que vos escreve
hoje de manhã estava tomando café antes de sair para o trabalho e vi um trecho da novela das 18h, “Garota do Momento”, em que a protagonista Beatriz (Duda Santos) está ensaiando uma cena de “Senhora”, de José de Alencar, com Ruth de Souza (interpretada por Eli Ferreira na novela). essa cena tem a ver com um dos novos entrechos da novela, que se passa no final dos anos 1950, sobre uma adaptação de “Senhora” para a televisão, e Beatriz viver a mocinha Aurélia — que no livro, é branca.
Beatriz é negra.
o que, considerando os anos 50, é obviamente revolucionário, mas considerando 2025, seria algo bem interessante de se ver na TV.
só que… se você ler com calma “Senhora” vai notar que faz muito sentido para o livro, que Aurélia não fosse branca. sério. de verdade. (e considerando que o cidadão José de Alencar era escravocrata, espero que ele esteja se remoendo no inferno com esse plot da novela)
vou explicar o motivo
pensa no seguinte: Aurélia é filha de Emília e Pedro Camargo — Pedro é o filho de um fazendeiro, mas não reconhecido. ou seja, filho bastardo. ele se casa em segredo com Emília, cujo irmão Lemos não aprova o casamento e considera que eles se juntaram (amasiaram, como se dizia na época), mesmo que o casamento tenha sido oficializado na igreja, e eles eram adultos — a aprovação do irmão, apesar de uma convenção social, era importante para a época o suficiente para tornar Emília uma persona non grata e ostracizada pela família dela.
segundo o livro, Emília não era rica. a família vivia com algum conforto, mas não era abastada. provavelmente eram remediados, uma espécie de classe média da época. Pedro era filho bastardo de um fazendeiro, um possível herdeiro, e temia que o pai o repudiasse e tirasse o mínimo que ele tinha — ou até não o reconhecesse — caso descobrisse sobre o casamento secreto.
(moço meio covarde, mas seguimos)
numa boa adaptação para a TV, Pedro esconder o casamento para evitar a fúria do pai pode estar relacionado a ele não aceitar que o filho tivesse se casado com uma mulher negra (em tempo, havia pessoas negras livres no século XIX no Brasil galera); os Lemos continuariam a repudiar Emilia pelo casamento sem aprovação (e com um bastardo!!!); e a necessidade de Emília proteger a própria virtude e reputação, mesmo sendo viúva, se tornaria ainda mais forte; além de Aurélia proteger a virtude e reputação dela também ser uma questão mais forte e poderosa por aqui.
(ah, e se Pedro fosse negro e Emília fosse branca? numa boa adaptação, os Lemos não aceitariam um homem negro — e bastardo — casando com Emilia, e o medo de Pedro, que ainda não fora oficializado como herdeiro pelo pai, prosseguiria com ainda mais força; além de termos algumas questões sociais complexas aqui: a mãe de Pedro é escravizada ou uma mulher livre?)
são direcionamentos para a história poderosos e que tornariam até a ascensão social de Aurélia um momento ainda mais brilhante, e seu domínio dentro da sociedade uma situação única: ela teria poder financeiropara lutar por mudanças importantes — abolição da escravatura, a igualdade feminina — bem como desafios ainda mais complicados para ser respeitada e fazer valer seus desejos e vontades dentro dessa sociedade extremamente racista e patriarcal do século XIX.
ela também ganharia mais contornos para além do casamento com o abestalhado do Fernando Seixas. dentro de um livro? seria ainda mais interessante do que o livro original.
em resumo, essa adaptação a Globo está perdendo — e não para usar na novela das 18h, e sim para adaptar mesmo, de forma séria, com orçamento alto, diversidade em frente e atrás das câmeras e figurinos de babar
(e eu deveria escrever um negócio desses)