por que uma mulher negra não ganha o Grammy de Álbum do Ano há 25 anos?

Marina Teixeira
7 min readFeb 5, 2024

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tl;dr: racismo

várias pessoas comentaram em português e inglês em minha timeline do ex-twitter após os resultados do Grammy Awards 2024, quando Taylor Swift e seu “Midnights” foram consagrados o Álbum do Ano — a quarta vez da cantora e compositora, que se tornou a primeira artista a ter quatro prêmios nessa categoria na carreira.

a discussão passou pelo fato de que havia álbuns que mereciam mais, que o “Midnights” não era o melhor álbum da Taylor, falou-se sobre privilégio branco, mas uma pergunta que rodou pela timeline foi o que me chamou a atenção.

“por que uma mulher negra não ganha o Grammy de Álbum do Ano há 25 anos?”

Lauryn Hill com seus CINCO prêmios Grammy em 1999

desde Lauryn Hill com o “The Miseducation of Lauryn Hill” (1999), nenhuma mulher negra ganhou o prêmio de Álbum do Ano. e olha qeu tivemos várias mulheres negras entregando trabalhos belíssimos (e altamente comerciais, considerando que o Grammy é um prêmio da indústria), mas que não chegaram lá.

Beyoncé, naturalmente, é o nome a ser lembrado — a maior vencedora de Grammys da história, a cada lançamento sendo mais inventiva, se desafiando ainda mais, entregando obras completas — e com o discurso do marido Jay-Z durante a premiação, apontando adequadamente dedos para a Academia sobre o assunto (não apenas sobre Beyoncé, mas com artistas negros no geral), a pergunta continua forte em minha cabeça, e por isso eu decidi escrever este texto.

minha teoria em torno desta resposta (que vem de minha vida acompanhando fóruns de música e minhas análises de futurologia sobre Grammys desde 2014) é um pouco mais longa do que isso, mas no final, sempre cairá na mesma razão: racismo.

mas vamos por partes.

o Grammy existe desde 1959 e até 2024, apenas doze pessoas negras levaram Álbum do Ano: a primeira foi logo uma das maiores lendas da música mundial, Stevie Wonder, que basicamente dominou a meiúca dos anos 70: “Innervisions” (1974), combando com “Fulfillingness’ First Finale” em 1975, e depois “Songs in the Key of Life” em 1977.

até chegarmos à primeira mulher negra a ganhar o prêmio, Natalie Cole por “Unforgettable… With Love”, o álbum de jazz com covers do pai — e até mesmo um dueto com Nat King Cole (morto algumas décadas antes, importante destacar), em 1992, apenas três pessoas negras levaram o Grammy, todos homens. Michael Jackson (1984, pelo “Thriller”), Lionel Richie (1985, com “Can’t Slow Down”) e Quincy Jones (1991, pelo “Back on the Block”).

pela ordem cronológica, os outros vencedores foram:

1994 — Whitney Houston com a trilha de O Guarda Costas

1999 — Lauryn Hill e o “The Miseducation of Lauryn Hill”

2004 — Outkast com “Speakerboxxx/The Love Below”

2005 — Ray Charles, “Genius Loves Company” (póstumo, nessa época teve o hype da biopic também)

2008 — Herbie Hancock, “River: The Joni Letters” (álbum de covers de Joni Mitchell)

2022 — Jon Batiste, “We Are”

agora, se você prestar bastante atenção, há um padrão nessas vitórias, e duas exceções que acabam por confirmar a regra.

um dos segredos está na passagem de tempo.

com o passar dos anos, a música feita e promovida por pessoas negras se tornou a música estadunidense por excelência — em especial na década de 2010, onde o rap passou a dominar as paradas. lembre-se de que o Grammy é o prêmio da indústria.

neste período, sabe quantos rappers levaram? 0

além disso, a década de 2010 trouxe uma emergência de rappers femininas que não se via desde a década de 90, capitaneada por Nicki Minaj e depois seguida por outras artistas — Angel Haze, Azealia Banks, Cardi B, Megan Thee Stallion, Latto… muitas meninas fazendo trabalhos ótimos com excelentes desempenhos comerciais.

Cardi B e seu Grammy de Álbum de Rap em 2019

de todo esse grupo, a mais próxima de levar Álbum do Ano foi Cardi B, com “Invasion of Privacy” (excelente álbum, a propósito). ela ficou com o prêmio de nicho, Melhor Álbum de Rap.

ou seja, entre 2008 e 2022, a música produzida pelos negros estadunidenses não apenas explodiu, mas se tornou a música que representava o contexto pop dos EUA — especificamente o rap, que sempre foi marginalizado, não apenas pelas rádios tradicionais, como também o próprio Grammy. mesmo com o combo qualidade + sucesso (lembra que eu falei sobre o Grammy ser um prêmio da indústria), nenhum artista do gênero dominante neste período de quase QUINZE ANOS, que pautou a música pop estadunidense, levou o prêmio.

e nisso, mulheres negras — seja fazendo rap, seja fazendo qualquer tipo de música comercial ou de nicho, foram ignoradas.

mas, quais são as razões que eu acho que fazem sentido para os 25 anos sem mulheres negras levando o prêmio principal do Grammy?

  1. Indústria limitante — mulheres negras, independentemente de seus interesses, parecem ser sempre puxadas a cantar R&B ou soul, mesmo que elas queiram trabalhar com algo diferente (exemplo clássico: a própria Beyoncé, Janelle Monaé, Rihanna…) e elas precisam entregar algo muito diferente e específico para conseguir passar de um field ao outro (mesmo assim, muitas vezes elas são encaixadas na esdrúxula categoria de R&B progressivo (?), ex-“Urban Contemporary” (??). São raras as mulheres negras que conseguem estourar sendo prioritariamente estrelas pop (no conceito de pop sem outras influências específicas), conto nos dedos Whitney, Mariah (mas todas elas foram mesclando seu som aos poucos). após Rihanna? conto igualmente nos dedos quem se adequa. talvez Doja ou Cardi, mas elas estão ali na leva de rap = pop.
  2. Preconceito musical — perceba que Lauryn Hill e Outkast são exceções — artistas de Rap, R&B, de misturas que até hoje pautam o som dos artistas negros atuais, além da construção de artistas femininas negras com identidade própria e contadoras de história. mas no geral, os vencedores são bem similares: R&B/soul “adequado” para a Academia, jazz, e um pop mais adulto. lembre-se de que tanto os álbuns de MJ quanto os de Lionel, apesar de serem pop, são de um período em que ser negro na música pop ainda era um desafio maior do que hoje. veja que até os vencedores mais recentes (Hancock, Batiste), partem de uma visão “adequada” do que a academia acredita ser a música vencedora de Grammy de Álbum do Ano. oque se torna limitante para artistas negros radiofônicos ou de gêneros historicamente marginalizados como o rap. depois de “River”, artistas populares como Lil Wayne (“Tha Carter III”, que foi O ÁLBUM de 2008–9, quem esteve lá esteve), Rihanna (que só foi indicada por “Loud”, mas 2012 foi um ano meio impossível por causa de Adele), Kendrick Lamar, The Weeknd, Drake, Childish Gambino, Jay-Z, H.E.R, Cardi B, Lizzo, Lil Nas X, Kanye West, Mary J. Blige, Doja Cat, SZA — e nomes que trafegam entre o mainstream e o nicho como Janelle Monaé (que não é valorizada nem no próprio nicho) e Jhene Aiko já foram indicados e nunca levaram.

e olha que nem falei sobre Beyoncé.

todos esses nomes, em maior ou menor grau, foram seminais em diferentes momentos da música mainstream estadunidense, várias vezes rompendo as barreiras dos gêneros onde estavam e influenciando outros artistas que os seguiram. Nenhum deles chegou perto do prêmio principal.

3. Misogynoir — esse termo em inglês significa o ódio, desconfiança e preconceito sofrido por mulheres negras, um combo de sexismo e racismo que diferencia as vidas e experiências de mulheres brancas e negras na sociedade. sim, mulheres no geral não são valorizadas dentro da música, e regularmente homens cis ganham prêmios com trabalhos muitas vezes apenas normais. porém, às mulheres brancas que ganham, é permitido muitas coisas que parecem ser negadas às mulheres negras.

mulheres brancas podem ganhar Grammys mudando de gêneros, cantando sobre seus erros, sendo imperfeitas, bagunçadas, tudo dentro de um enquadramento de “sinceridade”, “verdade”, “songwriter!!!”. mulheres brancas podem ser inovadoras, mulheres negras não. mulheres negras cantando sobre dinheiro e sexo, cantando sobre relacionamentos fracassados, não chegam ao prêmio principal, porque quem ganha é a “adequada”, “honesta”, cantando “vestida, coberta”.

Lauryn Hill é exceção, não a regra. Natalie Cole só tem a chance de um AOTY ao cantar jazz ao lado do pai morto, coberta e sóbria.

Natalie Cole e seus três prêmios Grammy em 1992

mulheres negras não podem inovar, não podem sofrer de amor, não podem ser jovens confusas com paixões adolescentes, não podem viver com as consequências de seus erros. mulheres negras não têm sequer o direito de errar. e é por isso que ficam restritas ao nicho. e aí você entende por que Beyoncé não levou nem com o “Sasha Fierce”, que foi um dos projetos mais “convencionais” de sua carreira indicados ao prêmio principal: mesmo ali, em um álbum também comercial, ela está repensando quem é a mulher que você vê, quem é a Beyoncé que você conhece versus a mulher que ela é de verdade. infelizmente, esse privilégio, o de ser complexa, só é dado às brancas.

meu chute? Beyoncé só leva o Grammy de Álbum do Ano caso lance um tributo à Aretha Franklin.

alguém manda essa dica pra Queen B.

e vocês, qual o motivo de termos esse gap sem mulheres negras ganhando o Grammy de Álbum do Ano? deixe sua opinião nos comentários.

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Written by Marina Teixeira

writer, journalist and anxious overthinker

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